Serapião Cara de Pedra se apaixonou achadamente pela linda e delicada Caroline Lábio de Mel, e o sucesso de um casal tão improvável atiçou os ânimos e as línguas na cidade de Barra de Serinhaém, onde ambos amantes viviam. Serapião era íntimo da enxada e da cachaça, Caroline tinha apego pelas artes, tocava piano e recitava poetas raros. Serapião tinha as mãos rudes e os gestos não menos; a alcunha cara de pedra foi adquirida quando, garantem os amigos, rachou ao meio uma coluna de concreto. Caroline tinha hábitos mais usuais para uma moça de sua estampa; dona de um olhar tardio e de um olho imediato, oscilando entre o feiticeiro e o indeciso, tal particularidade não permitia que se descobrisse qual a sua cor, que dirá o que dizia. Era desses olhares que parecem querer voar, quando a maioria quer se fixar. Um enigma o olhar de Caroline. O olho e o olhar de Serapião eram o destaque negativo de um rosto marcado por vincos e protuberâncias que lhe davam mesmo um aspecto rochoso.
A felicidade conjugal dos dois era motivo de revolta das donas de casa e futuras casadoiras, que não entendiam o que fazia unir um par tão diferente, que pareciam até mesmo ímpares. Serapião sabia dos bochichos, mas fazia que não sabia, e quando lhe perguntavam porque ele “engolia calado o sapo dos vizinhos”, ele respondia que a desfeita doía, era verdade, mas sapo ruim de engolir é o verdadeiro, porque o metafórico se digere fácil, ainda mais quando se arrota sobre os invejosos os sinais chocantes da felicidade.
- A incompatibilidade é o que os completa. – arriscou uma senhora que, além da tristeza de ser infeliz no casamento, se vangloriava do seu infortúnio, publicando-o.
- Não é isso – acentuava outro –, o que faz o casal feliz é a compaixão dela para com ele. Ela se satisfaz dando amor a um pobre-diabo que nunca poderia sonhar beijar um lábio tão exuberante...
As conjecturas acerca do casal iam disso a pior. Quando eles passeavam pela londrina cidadela (londrina pelo cinza do céu), Serapião estufava o peito e o orgulho, acenava sem recato para o dono da quitanda, pisava com exagerado vigor a humilde ruela de barro do bairro, saboreando a delícia de se saber notado, invejado, admirado, contemplado. Sentia-se maior que o próprio lugar. Não é difícil imaginar a satisfação de Caroline. Ela e seus cabelos. Cabelos de fantasia. Quando os fios deslizavam uns sobre os outros, não parecia obra da gravidade ou do gesto, mas de algum tipo de magia que instiga mais pelo efeito do que pelo segredo. Mas Caroline não era só cabelo, graça e olhos furta-cor; era implacavelmente cordial com os desafetos e amável com os injuriadores, e, para agravar o ódio dos detratores, via-se claramente que a cordialidade e amabilidade fluíam da pureza do seu espírito, e não da soberba e da vingança, como arguiam alguns.
Os prazos que os vizinhos davam para que eles se separassem iam-se esgotando sem a menor pressa; as apostas (a dinheiro) que se faziam para prever a data em que Serapião e Caroline iam se separar, morriam sem haver ganhador. A dor coletiva pela felicidade pública do casal atingiu o pico quando, sem mais nem porquê, um morador decidiu deixar a cidade:
- Aqui não fico mais.
O surpreendente exemplo do notável morador foi seguido a princípio com alguma cautela: um inventava uma viagem, outro um emprego fora, aquele uma necessidade médica para se ausentar; em meses, a diáspora fora concluída, restando à cidade apenas os dois enamorados amantes.
Não tinha a mesma graça o passeio vespertino, a ida frequente às casas. Em menos de uma semana, eles começaram a se estranhar. Caroline apertava a pasta de dente pelo meio do tubo, e Serapião preferia que ela fosse apertada na base; logo ela implicava com ele que a manteiga deveria ser raspada no pote, e não tirada em nacos; ela molhava o pão no café, o que fazia Serapião se contorcer de nojo.
- Por que molhar o pão na xícara se já vai molhar dentro da boca?
Sucessivas foram as brigas, as ameaças de divórcio e outras afrontas menos gravosas. Quando a notícia da separação atingiu os destinos certos, gradativamente a cidade foi sendo repovoada, com os moradores jubilosos pelo regresso; a paz e a igualdade de condições estavam restabelecidas na cidade. Unidos, Serapião e Caroline causaram a desunião alheia; separados, uniam novamente o que a necessidade de se ajuntar chama de cidade. Ambos, antes tão afeitos às desigualdades que eram examinadas por terceiros, agora estavam indiferentes. A indiferença, o pior subproduto de um amor desfeito.
Em carta, Serapião dizia à ex-amante que as consequências da separação eram devastadoras. Estava ele tomado por desejos estranhos, aprendendo música, recitando poetas comuns, chegando até ao delírio de comprar livros. Caroline, exposta à mais cruel das realidades, sequer sabia de quem era o filho que transportava no ventre, sendo necessário, além de um exame de DNA, um exame de consciência. A crônica da cidade de Barra de Serinhaém relata que ela sofreu eclampsia no parto, e veio a óbito um dia depois; a Serapião coube vagar pelas cidades vizinhas, recitando os mais doces versos da língua latina: “primavera/ alteza do mundo/vinga teu manto e realeza/manchado por sangue imundo”. Morreu triste e solitário, com a cara petrificada pela morte, que esculpiu nela um belo e sereno retrato, como se a pedra fosse transformada em um original mármore do Pentélico.
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