“Tenho um peito de lata/ um nó de gravata/ no coração/ tenho um sorriso comprado a prestação...”
Prova de que a hipocrisia, além de vigente, serve à salvação. Poderia fazer do texto de hoje uma parábola, um aforismo, algo do gênero. Mas não. Os detentores da ética eclesiástica surraram os chineses pelo ardil de, na abertura da Olimpíada, colocarem para cantar uma menina linda, dublada por uma feia. Jornalistas, atrizes, modelos, apresentadores de TV e demais ascetas da Superclasse condenaram a atitude do país sino, fazendo badalar o sino mouco da hipocrisia nossa de cada dia. Perdoe a previsibilidade, mas não podia deixar passar em branco os dois sinos.
A China desespera-se para se mostrar ao mundo bela, forte, pungente. Esforço que não se pode condenar. Pessoas de opinião chegaram a dizer que a infância tem “a sua graça” e que era um absurdo o truque engendrado pelos organizadores do evento. Não acho. A menina não era apenas feia, mas bastante feia. O que há de mau em ser feio? O feio existe, presumo, para realçar e lustrar o belo. É um parâmetro cruel, mas sensato. Como podíamos aferir a beleza se todos fossem belos? Do jeito que falam, condenam o feio à categoria de criminoso insidioso, o que é injusto, posto a beleza, como a feiura, ser um sorteio aleatório, feito pelos dados da natureza. Sendo o mundo um lugar feio, e mesmo as pessoas bonitas padeceram de algum tipo de feiura composta, é um terror querer censurar um país por querer se maquiar, lograr o que o olho vê e massagear o ouvido.
Muita gente condena as práticas chinesas (eu incluso), mas está lá em Pequim, cobrindo o evento, indo turistar, quando não comprando as bugigangas lá produzidas a preço pecuniário módico e custo humano despótico.
A hipocrisia é uma ferramenta assaz necessária à sobrevivência humana. Sem ela, não seria possível nem as polis nem as favelas. Imagine o pavor de termos de nos suportar sem o advento supradivino e melífluo dos hipócritas? O que pega mal é criticar um ente tão nosso, tão entranhado na nossa psique. 900 milhões de pessoas vivem divisando a miséria na China. O vultoso progresso econômico, sequelas do capitalismo, só faz aumentar o abismo que desune os ricos dos miseráveis, em vez de integrá-los, o que é virtualmente impossível, já que para isso – cálculo meu – seria necessário um PIB chinês de uns 700 trilhões de dólares. Atualmente a Receita deles é de 11 trilhões. 11 trilhões divididos por 1 bilhão e 300 milhões de pessoas dá quanto para cada chinês? Deve dar pouco. A saber que o rateio é mais injusto do que a distribuição que a natureza dá para ser-se belo e não belo. Não tem para onde correr. Quando não é a Economia que nos arruína com seus achaques, é a natureza quem o faz, com suas fanfarrices estéticas.
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