Eu sou o show, as pessoas se agitam e se disputam para me prestigiar ou de mim se afastar. Sou assediado por toda parte, mas é didático esclarecer que, para cada plateia que paga para me ver, existe sempre outra que pagaria o infinito para me não ver jamais.
Quando me apresento para espetáculos que envolvem possibilidade de sangue, as dilatações das pupilas da assistência sempre me enervam um pouco. Não digo que o fenômeno me atrapalhe a performance, mas me distrai a ponto de fazer jorrar o sangue nos momentos menos críticos das apresentações.
Nos eventos em que os espectadores querem apenas gritar efusivamente, a excitação por me ver cantando, ou simulando cantar, me enche de soberba e estima. Mui raramente eles me ouvem, tal é a invasão dos decibéis nos tímpanos dos presentes. Receio que isso seja o mecanismo mais eficaz para o sucesso dessas apresentações, mesmo porque minha fama e meu renome já inflam naturalmente os sentidos das pessoas, e se eu xingo em outro idioma, ou se bruscamente projeto gestos obscenos, sou louvado do mesmo modo.
Há também os concertos pobres e tristes, mormente realizados no interior da alma das pessoas. É quando me apresento em eventos fúnebres, e eu ali, transmutado e horizontal, representando o morto, me desabo de rir com as performances desse tipo peculiar de audiência. Todavia, é dos espetáculos que eu menos gosto de protagonizar, não pela frieza do ambiente com suas flores nauseabundas, as saudações póstumas, mas pelo calor que impregna as emoções, as boas e as más.
Quando me habilito numa estrepitosa realização de uma catástrofe natural, aí sim meu ofício atinge o ápice: é quando o humano se revela nas suas miudezas, perde a capa civilizacional e se entrega à verdadeira humanidade que está reprimida pelo código das cidades. Foi o que vi em 2006 d.C., pelos lados da Ásia, naquele tsunami extraordinário que varreu quase 300 mil vidas para o abismo. Genuíno e curioso espetáculo.
Crianças jovens, velhos e adultos se entregavam sem a menor cerimônia às garras da sobrevivência, pisando numa mão agarrada a uma vareta, um pé apoiado num caco de telha, tudo era feito para o fim de se tornar vivo de novo, já que muitos dos que vi matarem para não morrer já davam a vida como perdida.
Quando claramente me aborreço dessas agitações, me entrego à mais absoluta perfídia, que é acompanhar pelos olhos do bebê abandonado (normalmente em lixeiras) as faces da mãe impune, que misteriosamente nunca corre, sai pé ante pé, como quem acaba de esclarecer um obscuro passado. Claro que este sadismo me causa muita acusação desmedida, como a de eu não ter coração, mas cumpre dizer que sou todo intestino, nunca perfeição.
Fui absolutamente desenvolvido não para socorrer as pessoas nas suas (muitas) agonias, mas para analisá-las e senti-las, pois. Fica evidente que, para mim, não importa se estou presente num concerto de música ou se numa tragédia… Os sentimentos são similares, embora opostos, já que, em ambos, os humanos perdem momentaneamente a noção de sua condição humana. É uma dura tarefa a minha, mas me orgulho de ser eu o executor dela --- vai que cai nas mãos de um burocrata uma responsabilidade assim tão maravilhosa?
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