“Digam o que quiserem; o homem gosta dos grandes crimes”. Machado de Assis, A Semana, 25 de dezembro de 1892.
Uma menina de três anos foi morta pelo próprio tio a golpes de foice numa cidade de nome incompreensível num estado remoto que alguns conhecem como Pernambuco, doce terra onde eu nasci, parafraseando o Meu Pequeno Cachoeiro.
Isabella, 5 anos, se desvencilhou da vida em igual data, de forma idemente covarde e é até provável que destine-se ao mesmo endereço metafísico da sua companheira de desdita pernambucana. O que as distanciam no mundo dos vivos, é a extensa cobertura das suas mortes. Uma, na morte, ganhou a obscuridade dos três anos em que permaneceu neste mundo mau; a outra, ganhou a extensão póstuma de uma vida de carinhos, confortos e afetos, uma autêntica filha da classe média brasiliana.
É certo que a morte não distingue classes; morrem-se com a mesma regularidade ricos e pobres, é natural que alguns ricos custem mais a morrer, fenômeno eterno e até essencial. O que abomino não obstante a crueza do caso da pequena paulistinha é a insânia da imprensa, o alvoroço por “um furo”, um dado qualquer, a competitividade entre as redes de televisão que cobrem o caso são dignas de ambientes empresariais; apresentadores se comovem em pleno ar, como se fossem parentes da vítima, muito embora saiam dos estúdios para um happy hour; o certo é que dissimulam a tristeza e capricham na emoção, no olhar úmido, tudo para deixar, “a nação comovida”; perguntam nas ruas sobre o caso, mães, pais todos eles também capazes de atrocidades, porque humanos, se dizem “indignados” e esbravejam, acusam, lançam pragas aos céus.
Talvez umas dezenas de Isabellas tenham morrido no interregno que marcou a morte da atual estrela fúnebre nacional; muitas outras hão de morrer; naturalmente, para ganhar o caráter de “comoção nacional” e estrelar as manchetes as próximas vítimas terão de reunir qualidades adequadas ao papel de estrelas nacional, quais sejam, morar numa grande capital, ter a pele branca, a carinha angelical, os cabelos lisos, e melhor, viver no andar de cima da pirâmide social.
A imprensa é uma tragédia. Dá nojo acompanhar a cobertura do assassinato da pobre Isabela. Diga lá, Chico.
Por que cresceste, Isabelinha?*
Assim depressa?
Estabanada?
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo de poder..
Te ver as pernas bambas, Isabelinha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Quebrar tua boneca Isabelinha
Cortar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos botequins...
Tornar azeite o leite do peito que mirraste
No chão que engatinhaste salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre Isabelinhas
DE ONDE NÃO DEVERIAam, NUNCA TERem SAÍDO...
*Curuminha.
Uma Canção Desnaturada, 1979.
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